A ESTESIA DA ARTE
Josenilton kaj Madragoa
Os dicionários normalmente possuem de dez a vinte acepções para o
verbete "arte", reproduzindo o conceito reinante nas diversas
correntes de pensamento e de estética do presente e do passado. Porém, o
conceito de Arte é o mais variado e infinito de toda a história humana.
Peço licença para externar nosso conceito de Arte, a partir de uma ótica
estética transensitiva, apropriada ao contexto geral dos pareceres por
nós emitidos acerca da criação e da apreciação artísticas.
Convencionou-se chamar de arte as principais formas de expressão da
criatividade estética, a exemplo da música, da pintura, da literatura e da
dança. Logo, artista é quem produz alguma dessas formas de manifestação.
Muitas produções classificadas convencionalmente como artísticas são
verdadeiros canais de drogas ou psicopatias ideológicas ou comportamentais.
Muitas de tais produções aparecem nas mesmas formas convencionais de
manifestação estética (música, pintura, literatura etc). Entretanto, embora às
vezes obedientes a regras de estilo, são verdadeiras antenas de incitações a
vícios, terrorismos, suicídios, alienações, emburrecimentos, loucuras e
depressões. Não são manifestações artísticas, ainda que seus criadores sejam
chamados de "artistas".
É certo que muitas manifestações artísticas modernas têm seu quê de
hermetismo em relação aos pensares do povo. Porém, ao invés da valorização e
realce da Arte popular genuína, velha e sempre presente (ainda que cada vez
mais anônima), os capitães da indústria (in)cultural incentivam o movimento chamado
Arte Pop, fomentada por grupos estranhos às formações populares. [A Arte
Pop, ou Pop Art, por sua vez, desde seu surgimento no início dos anos sessenta,
sempre esteve intimamente ligada ao consumerismo (in)cultural de massa. Sempre
injetou nas veias fáceis do corpo da sociedade os seus modismos efêmeros e de
curta duração e as suas propostas de diversões fúteis, muito mais
culturofágicas do que culturogênicas. Só nunca prestou compromisso com a Arte
propriamente dita.] O argumento reinante é a necessidade de valorização da
Arte popular como forma de comunicação direta entre a Arte e o povo.
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Arte não é filosofia, não é ciência, não é cultura e não é religião,
embora normalmente se utilize de vieses filosóficos, científicos, religiosos ou
culturais para se manifestar. A Arte pode e costuma se perpassar através de uma
obra que perpassa uma ideologia qualquer. Daí é lícito se afirmar a existência,
por exemplo, de uma arte filosófica, arte cultural, arte popular ou arte
religiosa. [A Arte, quando manifestada pelo viés humano, sempre teve que
passar meio espremida entre as formas limitadas e ideologizadas de seus
produtores, reprodutores e apreciadores. Limita-se a ser co-autora do produção
juntamente com o artista.]
A Arte, em si, é apenas Arte, embora não exista em si. Depende sempre de
uma forma para se pronunciar. Ademais, não existe forma de arte pura quando
produzida por um ser humano, Este, além de suas subjetividades, sempre
representa também alguma idéia reinante, alguma ideologia, algum interesse
social, consciente ou inconsciente. E isso contamina a pureza da manifestação
artística, ainda que essa contaminação possa até seja útil e benéfica para o
próprio artista e para seu público-alvo. Há contaminações que até servem para
realçar e chamar mais ainda a atenção para a Arte. [O próprio ser humano é
obra-prima da natureza.] Outras tendem a afastar ou anuviar sua expressão.
Só pode ser considerada artística a manifestação estética que instiga,
que provoca ou que relembra ao espectador-contemplador sua origem divina; que
lhe supersensibiliza ou desperta os sentimentos espirituais mais nobres; que
lhe faz sentir-se melhor do que o que é. Pode provir de uma fonte humana,
espiritual ou natural e pode se dirigir para a humanidade, para a
espiritualidade ou para a natureza.
[O "sentir-se melhor" acima referido é no sentido de expandir
a compreensão da vida, do mundo, de si mesmo e dos outros. Pode ser uma
melhoria das condições psicológicas com que se enfrenta o dia-a-dia, através do
despertamento de uma maior sensibilidade, afetividade, inteligência e boas
sensações. A Arte por si só não transforma nem tem compromisso com a transformação.
Seu papel é despertar, suscitar, influir, apontar para o infinito de onde
viemos e para onde voltaremos. Por falta de uma palavra mais específica e
precisa, chamamos esse quê, que se transcende da obra e entra em comunhão com a
transcendência supersensível do apreciador, de Arte.]
Sempre há um quê de terapia na Arte, em qualquer de suas formas e
gêneros, seja para quem a manifesta, seja para quem a aprecia. Quem não precisa
da Arte como terapia, melhora suas potencialidades físicas, mentais ou anímicas
com sua influência benfazeja. A Arte, vista a partir dessa perspectiva, é a
grandeza que se comunica intimamente com os sentidos anímicos,
independentemente da recepção consciente pela sensorialidade física e
intelectual. Não depende também do aspecto cultural, social ou ideológico da
obra. Pode se entremesclar numa sinfonia, num aboio de vaqueiro, numa pintura
paisagística (ou na própria paisagem pintada) ou num boneco de artesanato. Pode
sorrir numa fotografia (ou no próprio fotografado), num soneto, num toque de
guitarra, num canto orfeônico ou num texto de cordel. Pode resplandecer numa
moda de viola, numa cena de teatro grego, num toque de berimbau ou no
gorjeio de um rouxinol... Afora isso, pode se tratar de manifestação cultural,
religiosa, intelectual, ideológica, erotizante, libidinizante, psicótica ou
psicotrópica. Pode ser também mera expressão de uma subjetividade, de uma
carência, de um desabafo, de um protesto dadaístico, mas não manifestação
artística. Pode até haver todos os recursos possíveis exigidos para as
produções, tais como coerência, estilo e outras regras, artifícios e artimanhas
criacionais constituídas. Porém, se não houver a presença e a crescença sutil
desse superbelo transformador e que transcende as expectativas do
artistismo, então não é Arte. (O Belo artístico é exatamente a qualidade
dinâmica que há na obra de Arte, e que é captada pela sensibilidade humana e
espiritual do espectador, ao ponto de causar neste um contentamento profundo,
um sentimento maior, um despertar de valores mais nobres, ou pelo menos uma
estranheza que lhe chama à atenção ou lhe faz pensar.)
Especialmente nestes nossos tempos atuais de empobrecimentos estéticos
ideológico-capitalistas, está ocorrendo mais é o império da antiarte. (A
artiarte é a produção "baseada em propostas antagônicas das formas
tradicionais ou na rejeição total de práticas artísticas e valores estéticos
consolidados, em favor do choque, da arbitrariedade e/ou
do nonsense [Exemplos: o dadaísmo, as propostas de Marcel Duchamps
(1887-1968) etc.]" – Dic. Houaiss.) E a antiarte tem se fortalecido e se
difundido muito mais do que os movimentos dadaísta e futurista do início do
século passado. Isso se deve sobremaneira às novas estratégias de marketing e
às coalizões com recursos eletrônicos e midiáticos, altamente rendosos para os
seus produtores-empresários. E neste passo, a sociedade de consumo está cada
vez menos estesiada, por causa do distanciamento e falta de maior interação com
produções verdadeiramente artísticas, e cada vez mais extasiada, por causa da
progressão multilateral dessas massificações anestesiantes.
Faz-se urgente e necessária uma maior disseminação da Logosofia e de outros
vieses de comunicação desalienantes, intrinsecamente neutras e estimulantes a
uma libertação subjetiva dos modelos desqualificadores da inteligência e da
sensibilidade humanas. Precisamos de novos movimentos contraculturais[3] que produzam
manifestações artísticas abundantemente, em todos os campos e para alcançar
todos os extratos sociais, apesar das dificuldades financeiras e do desapoio apriorístico
da grande mídia. (A contracultura é um movimento minoritário que tenta
subverter valores da cultura dominante. No Brasil, teve seu auge nos anos
sessenta, especialmente com o movimento hippie.) O mote dessa nova
contracultura pós-vanguardista seja o combate não exatamente à cultura
dominante, mas, sim, à máfia capitalística que mina e, através da disseminação
das suas produções antiartísticas, destrói as culturas e as possibilidades de
manifestação da Grande Arte.
A Arte não pode se confinar em nichos herméticos e restritos a seus
anônimos, privilegiados e minoritários cultores. Os artistas artísticos (ops!),
ou melhor, que têm sensibilidade artística, precisam "concretizar"
uma grande união, através de cooperativas, associações ou outras coalizões.
Precisam articular estratégias de "guerrilha cultural", campanhas e
outros mecanismos de infiltração inteligente nas camadas sociais e nas esferas
públicas e midiáticas. É uma missão urgente. Precisam restaurar a pujança e
soberania da Arte, ainda que para isso criem um movimento superartístico ou
reartístico. Que, pelo menos, organizem uma nova Semana de Arte ou redijam um
novo manifesto em que se defenda um canibalismo multifrontal contra a antiarte
predatória contemporânea.
O povão precisa ter opções de escolha sensibilizantes. Precisa
revalorizar suas origens e tradições estéticas e também seu futuro. Precisa
voltar a sentir pela estesia da Arte, em qualquer de suas formas (erudita,
acadêmica, cult, popular, artesanal, folclórica e de raiz). O povo tem
"fome oculta" de Arte. E a despensa de víveres artísticos nunca se
esvazia; só está trancada, ou melhor, trancafiada, como numa masmorra
ditatorial capitalística desculturalizante.
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A Arte é uma realidade transcendental. Está acima do artista e das
idéias que ele eventualmente representa.
A Arte pode se manifestar com ou sem a interferência consciente do
artista. "A Arte se sustenta por si só". Ainda que seja camuflada
pelas ideologias do artista, pela forma, pelas representações culturais e pela
própria visão contaminada do contemplador, ela sempre vai ser Arte. Pode até
não ser publicada ou mercadizada em seu tempo ou ser abandonada nos
subterrâneos, nos arquivos mortos, nas gavetas e porões da sua
contemporaneidade, mas continuará imanente a sua manifestação. Se ela não for
inteiramente destruída, vai continuar brilhando, arrepiando e impressionando,
mesmo que arruinada, quebrada, rasgada, queimada ou fossilizada. Bastará que
alguém a redescubra e a reexiba.
Qualquer obra pode ser estetizada, estilizada, embalada para viagem.
Porém, nenhuma obra pode ser artistizada apenas de fora para dentro. A obra de
arte já nasce essencialmente artística.
Porém, quando se trata de obras humanas, a manifestação da Arte conta
com a paternidade compartilhada do artista, através do refino, da regulação
formal e do acabamento aparente. É quando a Arte precisa também dos sensores do
artista para se evidenciar, quando se apossa do artista e ambos formam um todo
criativo. [Essa parceria fertilizante tanto mais e melhor produz quanto
mais sintônico e afinado for o artista. E se ambos, Arte e artista, se
apresentarem em perfeita sintonia e parelha harmoniosa, pode provocar um duplo
arrepio no contemplador: na forma e no conteúdo.]
Muitos artistas também exercem o papel de intencionalmente passear em
direção à fronteira da universalidade artística. Inicialmente, racionalizam e
pré-ordenam as idéias a discorrer e, de repente, se vêem planando nas asas da
imaginação. E aí já não é mais somente ele. Já é a Arte em comunhão com
ele.
O que vale na identificação artística é a boa sensação que a idéia
representada desperta, do homem para sua essencialidade e seus sentimentos
maiores. E isso não depende da forma, das regras de composição e dos artifícios
e criativos (embora normalmente se valha deles também). E, em princípio, não
depende da idéia ostensiva emitida pela fonte e não depende da idéia que cada
espectador consegue captar. Até uma obra tida como inspirada, intuída ou
captada das "ondas de pensamento" não lhe capacita a ser
obrigatoriamente uma obra de arte, especialmente se a sensação que a idéia
representa conduz o homem para sua animalidade e seus instintos menores. Tem-se
que mensurar a qualidade vibracional da produção, o tipo de arrepio que ela
provoca na alma. É quando a estética também jaz na própria contemplação, o que
faz a Arte se deslocar da obra para o receptor, como se a este coubesse o ônus
de arte-finalizar o trabalho usando sua sensibilidade como instrumento. A Arte
está primariamente na obra, em estado de expectativa, mas ela se perfaz e ganha
corpo justamente na ponte interagente com o receptor-contemplador.
A estética da Arte transcende a beleza captável pelos sensores físicos. [Estética
é derivada de estesia, que tem a ver com a sensibilidade e com a capacidade de
percepção da beleza profunda. Esta é transmitida mais para o sentimento do que
para o pensamento.] O que vale mesmo é a comunicação entre a Arte e os
sentidos anímicos do receptor, através dos sentidos físicos captativos deste.
No meio dessa linha de comunicação estão o artista e seus sentidos físicos
criadores e as técnicas e instrumentos de produção. [No caso dos artistas
do corpo (atores, dançarinos, pantomimeiros, cantores, contadores de histórias,
repentistas etc), a Arte inicialmente se comunica com o artista. Em seguida, em
comunhão com ele, se projeta para os sentidos físico-anímicos do espectador.
O artista que usa seu próprio corpo como instrumento de trabalho vai se
sensibilizando e se estesiando cada vez mais, na medida em que aprimora suas
técnicas e refina suas escolhas pessoais dos textos que encena para o público.
Quanto mais artístico for o próprio texto escolhido, tanto mais artística é a
manifestação exibida da Arte final dupla, que é a representação cênica.]
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A Arte é uma manifestação do divino que há dentro de cada artista, ou do
divino que há dentro da natureza universal. Uma obra de arte, por essa ótica,
transcende a sua contemporaneidade. Torna-se um clássico. Imortaliza-se. Não
perde jamais a sua aura. Mantém-se pronta permanentemente para um diálogo com o
contemplador de qualquer lugar e de qualquer época. Um diálogo de sentimentos,
de altíssimo nível.
Quanto mais expandimos a nossa espiritualidade ou a nossa consciência
universal tanto mais nos capacitamos a absorver os eflúvios transcendentais da
manifestação artística, que também tem o seu quê de universalidade. É quando
mais se estreita e mais bem se perfaz a linha comunicacional Arte-espectador.
O TEXTO COMO MANIFESTAÇÃO ARTÍSTICA
Na produção de um texto literário, seja de que tipo for (prosa, poesia,
texto teatral, letra de música, cordel, roteiro de cinema, mensagem etc), a
Arte não se manifesta objetivamente, porque não atinge de cheio os sentidos
físicos de um espectador-contemplador. Depende de como as palavras chegam no
intelecto do leitor ou ouvinte. Aí entram, como parte da expressão artística, o
significante e o significado que envolvem cada palavra em sua relação frasal. A
Arte literária só se manifesta a partir do entendimento profundo de cada
leitor-ouvinte sobre o que está verbalizado. Aí, sim, surge o texto artístico.
Aí, sim, pode-se falar de Arte Literária.
A depender do grau de intelecção que cada leitor-ouvinte atribui à obra,
a Arte também vai se manifestar na mesma proporção. É diferente das outras
formas de Arte que não dependem do texto verbal (música instrumental, pintura,
efeitos cinematográficos, fotografia, artesanato, escultura, designs gráficos
etc). Nestas, a Arte pode se manifestar por inteiro e objetivamente atingir
todos os que as estiverem espectando de forma contemplativa ou pelo menos
concentrada, ainda que os sentimentos despertados variem de acordo com o grau
de sensibilidade de cada espectador.
No texto verbal (oral ou escrito), além da estética formal das palavras
e das frases e além dos recursos e artifícios da articulação verbal, tem que
haver também a intelecção ou compreensão do conteúdo, ainda que cada um a seu
modo e em sua subjetividade.
A palavra oral, em si, já carrega uma carga vibracional-emocional muito
envolvente. Neste caso, a Arte se apetrecha da voz para se entranhar na alma do
ouvinte através do sentido auditivo, de forma instantânea. E o significado da
palavra só tende a coroar o arrepio do conjunto Arte-vibração sonora no âmago do
espectador.
Em outras palavras, a Literatura, em si, não é Arte. É apenas
Literatura. A Arte não nasce no texto nem na leitura objetiva ou identificativa
do texto. Nasce da relação texto-leitor, do processo leitoral de mão dupla,
quando o leitor lê para identificar, e é lido, ao se impressionar.
A estética da forma literária, por sua vez, pode contribuir para uma
aproximação da estética artística nos sentidos anímicos de quem lê ou ouve.
Porém, a contemplação e a receptividade artística só são viáveis quando o texto
desperta minimamente um sentido e um sentimento em cada leitor ou ouvinte em
particular.
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